Por Milton Santos

A toda a comunidade mundial"Opor à crença de que se é pequeno, diante da enormidade do processo globalitário, a certeza de que podemos produzir as idéias que permitem mudar o mundo". Evocamos aqui, um de nossos maiores pensadores, Milton Santos, geógrafo, professor emérito da Universidade de São Paulo e autor de mais de 40 livros, publicados em diversos países. Em 1994, recebeu o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud. Lecionou também em importantes universidades no exterior. Nasceu na cidade de Brotas de Macaúbas (BA), em 1926 e faleceu em junho de 2001, em São Paulo.Seguem trechos do livro Território e Sociedade entrevista com Milton Santos, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo. Utilizou-se a segunda edição, novembro de 2000.José Corrêa – Professor, grande parte de sua obra recente é dedicada à análise da globalização. Como o senhor caracteriza esse processo?Milton Santos – A globalização conseguiu materializar a metafísica, mediante o papel desempenhado pela ciência e pela técnica na produção das coisas. Há uma materialização física e uma realização primitiva, embora sofisticada, da ideologia. Tudo é ideológico. Estamos dentro de um mar de ideologias. Tudo é produzido a partir de uma ideologia, mas as coisas não aparecem como tal. Somos cercados por coisas que são ideologia, mas que nos dizem ser a realidade. Isso nos constrange, porque forma um sistema muito forte; e qualquer discussão que indique ser aquilo ideológico é desqualificada.José Corrêa – O senhor caracteriza a globalização como globalitarismo. Por que essa associação de globalização e totalitarismo?Milton Santos – Estou querendo chamar a atenção para o fato de que a atual globalização exclui a democracia. A globalização é, ela própria, um sistema totalitário. Estamos em um mundo que nos reclama obediência. Uma frase que se ouve com grande freqüência, quando reclamos algo, é: "O senhor é o primeiro a reclamar". Vocês nunca ouviram isso? Há um totalitarismo na vida cotidiana, que inclui o trabalho intelectual. Não é só no trabalho não intelectual, não é só na fábrica, que o totalitarismo está presente. Também no chamado setor de serviços. E a universidade é o exemplo formidável desse totalitarismo. Todos os dias somos solicitados a cumprir regulamentos, as normas… Mas é exatamente a norma que se opõe à essência do trabalho intelectual. Sem contar que rompe com a liberdade de o professor decidir o que é mais conveniente ao seu magistério. E tem-se isso a cada momento, em tudo. Há, portanto, um novo totalitarismo que, todavia, se apresenta como um convite a fazer as coisas bem-feitas, ordenadas. É um ritmo infernal que se impõe.Olhem o que se passa na política. No caso do Brasil, por exemplo, o discurso do chefe da nação, por ser da nação, deveria ser pedagógico. E, no entanto, o nosso chefe da nação diz que todos os que não pensam como ele são canalhas, burros, estúpidos, vagabundos, não admite nenhuma discrepância com o que ele próprio pensa. É a eliminação do debate. O pensamento único é a prática da política e da convivência coletiva marcada por esse "faça assim, faça de tal forma, senão está tudo errado". É a consideração simplória da técnica como absoluto, como norma – o que é próprio do nosso tempo – , levando à propensão de utilizar um mandamento técnico como se fosse um mandamento político, cultural, moral, religioso. É o fim da crítica e da autocrítica.Odette Seabra – O que conduz a este ritmo? O que torna este movimento hegemônico? O que faz com que todo o mundo caminhe na mesma direção? Porque, aparentemente, quando se pergunta sobre globalização ao ministro da Fazenda, ele fala de mercado de capitais; quando perguntamos ao cientista, ele fala da ciência e da técnica; quando perguntamos a um empresário, ele reclama da concorrência e das entradas sutis, às vezes nem tanto, das multinacionais…Milton Santos – Acho que o que conduz a esse ritmo hegemônico é a idéia de competitividade, que é diferente da competição capitalista, e que só se tornou possível nesta época, não era possível antes. Então ainda não se conhecia o mundo direito, não tínhamos o domínio da velocidade e os mercados eram relativamente regulados pela política nacional. A competitividade impõe o reino do fugaz, cria uma tensão permanente, que leva a esse atordoamento geral em que vivemos. Essa competitividade, possibilitada pelas atuais condições objetivas, é resultado da perversidade da globalização, e a única solução que parece viável é ir remando também. Quando um jovem opta pela competitividade como norma de vida é sociologicamente possível compreender, porque isso lhe aparece como a única defesa possível num mundo que não é nada generoso. É preciso mostrar-lhe que há outros caminhos, ainda que difíceis ou pouco conhecidos.Mônica de Carvalho – Esse ritmo que nos é imposto pela competitividade acaba promovendo uma enorme ignorância que, por sua vez, acaba favorecendo a submissão àquelas normas que também nos são impostas. A velocidade com que as coisas se transformam, com que as normas se modificam, parece tornar as pessoas cada vez mais ignorantes, porque se sentem inseguras, desprovidas de referenciais…Milton Santos – Quando o Ministério da Educação, no final de 1999, indicou as linhas mestras do novo ensino técnico, praticamente suprimiu o ensino de humanidades. Dessa forma, criaremos robôs, não propriamente cidadãos pensantes. E eu não vi reação. E por que nós não reagimos?

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