Pós-Ocupação

Dando vazão a necessidade de muitos de expressarem seus pontos de vista sobre o que foi e o que é a ocupação abrimos espaço para as análises da galera. Enviem textos para o e-mail da ocupação e publicaremos.


 Inaugurando a categoria "análises" temos os texto de Elizabeth Araújo Lima, Professora do Curso de Terapia Ocupacional da USP,   Naiada D. Barbosa, Estudante de pós-graduação, Bruna Taño , Estudante de Terapia Ocupacional da USP. As fotos são da Renata Monteiro Buelau , Estudante de Terapia Ocupacional da USP.

São Paulo, 26 de junho de 2007. 
 
 


 

 

Para não matar seu tempo, imaginou:

vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo:

no instante finíssimo em que ocorre,

em ponta de agulha e porém acessível;

viver seu tempo: para o que ir viver

a agulha de um só instante, plenamente.

Plenamente: vivendo-o de dentro dele;

habitá-lo, na agulha de cada instante,

em dada agulha instante: e habitar nele

tudo o que o habitar cede ao habitante.

      João Cabral de Melo Neto

Ocupar o intensivo: por uma micro-política da ocupação

Elizabeth Araújo Lima

Professora do Curso de Terapia Ocupacional da USP 

      Os estudantes da USP invadiram a reitoria e lá ficaram, ocuparam-na. Instauraram um acontecimento, criando barricadas no tempo cotidiano do trabalho universitário. Abriram espaço para novas formas de luta e para a invenção de uma nova política. Ocupação. Ocupar espaço, território, tempo, mas também e, sobretudo, ocupar o intensivo de um acontecimento que não se esgota ali naquele prédio nem naquela ação.

      O movimento dos estudantes foi deflagrado pelos decretos do governo Serra que ferem a autonomia universitária e pela ausência de resposta a esses decretos por parte da reitoria da USP, mas também da comunidade acadêmica em seu conjunto. Até a invasão da reitoria os sindicatos de professores e funcionários da USP parecem ter sido os únicos grupos no interior desta universidade, além daqueles dos estudantes, a se manifestarem em relação ao alcance e aos riscos que os decretos representam para a universidade pública.

 

      Os decretos encontraram uma comunidade universitária em marasmo, na qual os professores – cada um a seu modo – buscam sobreviver e insistem no trabalho na universidade pública, muitas vezes sem se dar conta que este trabalho tem se tornado cada vez mais privado. Privado não somente no que diz respeito às formas e critérios de financiamento das pesquisas, ou ao espaço cada vez maior ocupado pelas fundações, mas privado, sobretudo, no sentido que lhe dá Hannah Arendt, destituídos que estamos, cada vez mais, de ligarmo-nos e separarmo-nos uns dos outros por um mundo comum e de realizar algo mais permanente que a vida de cada um. Ficamos privados do mundo comum quando nossas ações e nossos discursos ao invés de construírem a teia das relações entre os homens, são cada vez mais reduzidos ao denominador comum de um labor voltado à manutenção da sobrevivência pessoal e coletiva – publish or perish – e à produção de conhecimentos a serem rapidamente consumidos no mercado das publicações, que com a mesma rapidez se tornam obsoletas.

      Mas me parece que os estudantes agiram, também, arrastados por um acúmulo de insatisfações que ficaram expressas na extensa pauta de reivindicações do movimento.  Insatisfações que vão, talvez, da decepção com um governo marcado por uma corrupção que parece já assimilada, ao tratamento dado às questões da educação pública de caráter, cada vez mais, administrativo-burocrático, chegando à experiência cotidiana numa Universidade marcada por desigualdades, burocracia, estruturas hierárquicas. Insatisfação que é tanto mais gritante quando se chega a esta universidade povoado de ideais e utopias. E não é apenas coincidência que um grande número de alunos recém-chegados, os chamados calouros, tenha participado do movimento na USP desde seu início.

      Que mundo comum temos construído na Universidade de São Paulo? Que universidade é esta que reproduz em seu interior as desigualdades da economia de mercado e no qual estudantes de Terapia Ocupacional – apesar da luta incansável de funcionários, professores e estudantes – assistem aulas, há 18 anos, em um Bloco provisório cercado por buracos, lixo, mato crescendo, goteiras no teto, enquanto estudantes de Administração, no prédio ao lado, ou de Medicina, da mesma Unidade, circulam em piso de mármore. É uma universidade que como toda instituição social realiza e exprime a sociedade da qual faz parte. Como diz Marilena Chauí, nossa universidade é parte constitutiva do tecido social oligárquico e autoritário que marca a sociedade brasileira.

      Num solo assim delineado os estudantes procuraram abrir um diálogo com a reitora e não tendo sido recebidos acabaram por invadir o prédio da reitoria da USP. Invadiram, ocuparam, ensaiaram a construção de uma outra sociabilidade, de outras formas de organização, e descobriram ali uma potência que não conheciam, experimentando, talvez pela primeira vez, participar politicamente do mundo, construir um mundo comum.  Existe? É possível? Embriagaram-se. E não é para se embriagar? Num mundo em que a esfera publica é ocupada pela exibição pública de experiências privadas,  experimentar a convivência e a existência em um mundo comum, em um espaço publico, não é pouca coisa.

      Eles criaram um verdadeiro acontecimento político na Universidade de São Paulo. Acontecimento que, para Deleuze, não se explica pelos estados de coisa que o suscita, mas também não se esgota naquilo em que torna a cair. Eles se elevaram por um instante, produziram novas maneiras de sentir, de se encontrar; experimentaram novas formas de agir. É este momento que precisamos agarrar.

      Para além de uma visível vitória expressa na publicação do decreto declaratório no. 1,  o grande ganho de todo este movimento – ao qual os professores e funcionários da USP também se juntaram numa experiência democrática de pensamento, posições divergentes e votações disputadas – parece ser a colocação em questão da própria estrutura de poder da universidade. Abriu-se a possibilidade de se inventar uma nova democracia no interior da USP, de questionar feudos e espaços encastelados de poder, de discutir de forma aberta e coletiva à democratização do acesso e as diferentes experiências de ações afirmativas que têm sido criadas em outras universidades públicas em nosso país. E é preciso estar atento. Se a universidade revela a sociedade de que é parte, os movimentos em seu interior podem indicar novas composições das forças em jogo no panorama atual.

      Assim, se a ocupação na USP levou-nos a esta vitória de grandes dimensões, agora um novo desafio se impõe: aquele de construir efetuações para o campo de possíveis que foi enunciado com este acontecimento. A criação de dispositivos e de formas de organização que possam encarnar este possível que começamos a vislumbrar, e que tragam para seu interior possibilidades de experimentação e de criação.

      Se a ocupação na USP tivesse se perpetuado indefinidamente, correria o risco de enterrar ali mesmo o possível que ela mesma instaurou. No mundo em que vivemos e no qual impera o “pensamento único”, qualquer experiência de invenção é facilmente cooptada por linhas de fascismo através das quais novos “pensamentos únicos” passam a se impor e ganhar terreno. Neste sentido, qualquer resistência ao estado de coisas atual tem que necessariamente passar pela afirmação da possibilidade de ser e pensar diferentemente. Qualquer posição que se quisesse única e que buscasse dominar e se perpetuar no interior do movimento que surgiu na reitoria estaria dando lugar a linhas de fascismo que nos atravessam a todos. No alerta que nos fizeram Deleuze e Guatarri, trata-se, sobretudo, de lutar contra o fascista que se aloja em cada um de nós.

      Levemos a sério a palavra de ordem pichadas nos tapumes da reitoria ocupada: ocupemos a reitoria que existe em nós. Cada um de nós tem uma reitoria, um palácio do governo, regiões de concentração de poder muitas vezes enrijecidas. É preciso ocupar essas regiões, investi-las, torná-las nítidas para nós mesmos. Mas também é preciso que experimentemos formas e momentos de esvaziá-las, desocupá-las. Desocupar abrindo espaços vazios para que a novidade que o acontecimento anunciou possa encontrar formas de expressão e de organização das forças em jogo. Para abrir-se aos possíveis que começam a se expressar é preciso acolher o acontecimento e o plano das perguntas que ele instaura.

      

 

      Pensar a dimensão micro-política desta ocupação implica reinventar a idéia de ocupação, podendo vislumbrar uma ocupação não somente de extensões espaço-temporais, mas uma ocupação no e do intensivo. Não se trata somente de controlar o tempo ou de dominar espaços, mas de ocupar um espaço-tempo que compreenda o próprio processo, imprevisível e aberto, de criação das novas formas que se esboçam, para que estas possam surgir em conexão com a potência que as engendra. Ocupar o intensivo do acontecimento, podendo vivê-lo no instante em que se dá. Nas palavras de Deleuze:

  •  

      “Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo.”

Pós-escrito:

      A mídia tem tratado o movimento da USP, em particular a ocupação na reitoria, com lentes muito velhas. Isto acaba servindo para enclausurar o acontecimento em categorias pré-concebidas impedindo que enxerguemos a novidade que ali se instaurou. Em matéria da Folha de São Paulo de 13/06/2007, informa-se que os estudantes da USP aprovaram no dia anterior um indicativo de desocupação do prédio da reitoria, ao que é acrescentado: “esse é o primeiro recuo desde o início do movimento”. Ora, pensar, pesquisar, imaginar outras formas de luta e os desenvolvimentos que o envolvimento na ocupação da reitoria exigiu, não é “recuar”, muito pelo contrário, é avançar na afirmação da potência de invenção de todos e de cada um.

Instaurando uma Conversa

Naiada D. Barbosa

Estudante de Pós-Graduação

      Da mesma forma que a greve é um movimento de construção coletiva, lento, gradual e que ganha forma com o tempo e nas relações, acredito que a construção de novas formas de prosseguimento desta mobilização também precisa ser construída e leva certo tempo para que aquilo que a ocupação e a greve abriram :abertura para escuta, dialogo, reflexões, embates e negociações; possam seguir em frente, ganhar um novo corpo e quem sabe, também num processo intenso e árduo, possamos transformar um pouquinho a realidade fria, hierárquica e rígida que é a universidade hoje e suas relações de poder.

      O movimento da ocupação foi revelador de como a estrutura 
universitária se constitui de forma fragmentada e áspera, e sua estrutura 
física e suas formas de relação com a produção de conhecimento não permitem, 
não possibilitam o espaço comum, público, onde os encontros, as trocas (de 
afetos, de experiências) e a convivência possam acontecer para que, de fato, 
este conhecimento se dê pelo encontro, no âmbito do humano, traduzindo um 
conhecimento encarnado que só assim poderá ser de utilidade pública e servir 
aos homens.

      Estamos num exercício intenso de conviver, de aprender a escutar, numa tensão entre as linhas de forças divergentes, opostas muitas vezes, que vão 
aparecendo e que precisam achar formas de co-existir e transformarem-se a 
medida que se afetam! Ufa!, cansativo… mas me parece que nos deixa mais vivos!

      

 

Continuando a Conversa

Bruna Taño

Estudante de Terapia Ocupacional 

      Agora  finalizada a ocupação  fica possível iniciar um processo de pensar e  colocar em  linhas o  que  tudo  isso  trouxe. Novas  formas de  ver  a  política e  a vida em  comunidade, as relações de modos menos  hierarquizados, menos  frios, menos endurecidos e mais humanos, mais verdadeiros, mais acalorados, mais inconstantes, mais  confusos, aquilo que podemos chamar de mais nossos. Mudanças essas, que  se  ainda  não se colocaram  como  mudanças  efetivas concretas, foram novas formas  de  viver experimentadas. Novas  formas  barulhentas, cansativas, turbulentas e  estabanadas, mas vivificadas, que  atravessaram a  nossa  rotina, nosso  cotidiano, mobilizaram  corpos e nos permitiram ver também o quanto estamos / ficamos enfraquecidos, febris, infectados, seja  por  vírus medicamente  conhecidos, como por vírus que adoecem nosso desejo e nossa vontade.

      Aprendemos  com  nossos  pais, que  uma  vida  boa e  de  sucesso  seria  aquela  dedicada a trabalhos sérios, garantidos, em empresas, multinacionais, e companhias que  nos  trouxessem garantias de crescimento profissional econômico e  quiçá pessoal. Entretanto, nem  eles  nem  aqueles que  nos cercam  puderam prever a  rapidez  com  que  todas  essas possibilidades se esgotariam de modo  tão  brutal. Não há vagas, não há emprego, não há condições de vida. Nesse contexto, não queríamos negociar apenas objetividades e ganhos materiais, no que não fomos muitas vezes compreendidos. Estaríamos diante de um  novo  woodstock? Um  novo  maio  de  68?

      Ouso  dizer que não. Apenas não sabíamos mais como pensar em  democracia quando todas as estruturas e instituições ao nosso redor foram infectadas com a mais sórdida e ineficaz relação de poder e de mais valia. Resistimos  não por rebeldia ou por vontade de baderna, mas sim para pensarmos  e construirmos, juntos, jovens, não  jovens, professores e trabalhadores, novas  formas de agir, transformar e estar o mundo. Novas  formas de faze-lo e não  somente de tê-lo. Paramos, entramos, rompemos os portões, as grades e as salas  como grito de vontade de estarmos  pensando e  agindo no  mundo de forma  mais  consciente, mais  humana e mais  efetiva para  que  homens, mulheres, estudantes, trabalhadores, negros, negras, trabalhadoras, homossexuais, heterossexuais , indígenas, e  todos  os  outros  grupos inseridos em nossa sociedade, pudessem ser ouvidos.

      Certamente para aqueles que lá  estiveram e viveram a ocupação, a conquista de novas formas de subjetivação, de percepção do  espaço puderem acontecer. A intensidade desta ocupação  se dá na afirmação de que as formas de existência vigentes e hegemônicas não  precisam ser e  não são as únicas, há outras formas de viver, de  sentir, de  pensar, de se relacionar, e  principalmente de sonhar e criar presentes em  nossos destinos. 

      

 

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