DA AUTONOMIA, EU NÃO ABRO MÃO

DA AUTONOMIA, EU NÃO ABRO MÃO!!!

Um dia num reino nada muito distante, um governador que gosta de posar com fusis resolveu acabar com a autonomia das Universidades. Esqueceu que nós estamos aqui. Chega! Da Autonomia, não abrimos mão! A Universidade pública é de todos!

 

São Paulo, 9 de setembro de 1964

Senhor Tenente-Coronel:

Há quase 20 anos venho dando o melhor do meu esforço para ajudar a construir em São Paulo um núcleo de estudos universitários digno desse nome. Por grandes que sejam minhas falhas e por pequena que tenha sido minha contribuição individual, esse objetivo constitui o principal alvo de minha vida, dando sentido às minhas atividades como professor, como pesquisador e como cientista. Por isso, foi com indisfarçável desencanto e com indignação que vi as escolas e os institutos da Universidade de São Paulo serem incluídos na rede de investigação sumária, de caráter "policial-militar", que visa a apurar os antros de corrupção e os centros de agitação subversiva no seio dos serviços públicos mantidos pelo Governo Estadual.

Não somos um bando de malfeitores. Nem a ética universitária nos permitiria converter o ensino em fonte de pregação político-partidária. Os que exploram meios ilícitos de enriquecimento e de aumento de poder afastam-se cuidadosa e sabidamente da área do ensino (especialmente do ensino superior). Em nosso país o ensino só fornece ônus e pesados encargos, oferecendo escassos atrativos mesmo para os honestos, quanto mais para os que manipulam a corrupção como um estilo de vida. Doutro lado, quem pretendesse devotar-se à agitação político-partidária seria desavisado se se cingisse às limitações insanáveis que as relações pedagógicas impõem ao intercâmbio das gerações.

Vendo as coisas desse ângulo (e não me parece que exista outro diverso), recebi a convocação para ser inquerido "policial-militarmente" como uma injúria, que afronta a um tempo o espírito de trabalho universitário e a mentalidade científica, afetando-se, portanto, tanto pessoalmente, quanto na minha condição de membro do corpo de docentes e investigadores da Universidade de São Paulo.

Foi com melancólica surpresa que vislumbrei a indiferença da alta administração universitária diante dessa investigação que estabelece uma nova tutela sobre a nossa atividade intelectual. Possuímos critérios próprios para a seleção e a promoção de pessoal docente e de pesquisa.

Atente Vossa Senhoria para as seguintes indicações que extraio da minha experiência pessoal e que ilustram um caso entre muitos. Formado entre 1943-1944, obtive meu grau de mestre em Ciência Sociais em 1947, com um trabalho de 328 pp. (em composição tipográfica) / o grau de doutor, em 1951 com um estudo de 419 pp. (também em composição tipográfica) / o título de livre-docente, em 1953, com um ensaio de 145 pp. (idem) / e, somente agora, acho-me em condições de me aventurar ao passo decisivo, o concurso de cátedra com uma monografia de 743 pp. (idem). Nesse ínterim, trabalhei como assistente depois de 1955. Outros colegas, que militam em setores onde a competição costuma ser mais árdua, enfrentam crivos ainda mais duros para a realização de suas carreiras. Isso evidencia, por si só, que dispomos de padrões próprios – a um tempo: adequados, altamente seletivos e exigentes, para forjar mecanismos auto-suficientes de organização e supervisão.

Não obstante, acato as determinações, que não estão a meu alcance modificar. Por quê? Por uma razão muito simples. Nada tenho a ocultar ou a temer; entendo que seria improdutivo enfrentar de outra forma tal vicissitude. A nossa Escola, por ser inovadora e por ter contribuído de maneira poderosa para a renovação dos hábitos intelectuais e mentais imperantes no Brasil, foi vítima de um processo de estigmatização que muito nos tem prejudicado, direta e indiretamente.
Não podendo destruir-nos, os agentes da estagnação cultural optaram pela difamação gratuita e pela detratação sistemática. Ambas não impediram que a nossa Escola avançasse, até atingir sua situação atual, ímpar no cenário cultural latino-americano. Conseguimos sobreviver e vencer, apesar dessa resistência tortuosa e dos seus efeitos nocivos. Cada professor que desse, nas atuais circunstâncias, vazão aos seus sentimentos e convicções pessoais, recusando-se a submeter-se ao inquérito policial militar estaria favorecendo, iniludivelmente, esse terrível jogo, para o desdouro final da nossa Escola.

Ao aceitar, pois, a posição a que me vi reduzido, faço-o sob plena consciência de deveres intelectuais maiores, a que não posso fugir ou desmerecer. Todavia, esse procedimento não envolve transigência ou omissão. Como no passado, continuo e continuarei fiel às mesmas normas que sempre orientaram o meu labor intelectual, como professor, como pesquisador e como cientista.

Não existem dois caminhos na vida universitária e na investigação científica. A liberdade intelectual, a objetividade e o amor à verdade resumem os apanágios do universitário e do homem de ciência autênticos. Estamos permanentemente empenhados numa luta sem fim pelo aperfeiçoamento incessante da natureza humana, da civilização e da sociedade, o que nos leva a perquirir as formas mais eficientes para aumentar a capacidade de conhecimento do homem e para elevar sua faculdade de agir com crescente autonomia moral. Não desertei e nem desertarei dessa luta, a única que confere à Universidade de São Paulo, grandeza real, como agente de um processo histórico que tende a incluir o Brasil entre as nações democráticas de nossa era.

Aproveito o ensejo para subscrever-me, atenciosamente,
Dr. Florestan Fernandes

Exmo. Senhor CoronelBernardo SchomamD.D. Presidente do I.P.M. na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo

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One Response to DA AUTONOMIA, EU NÃO ABRO MÃO

  1. Fábio says:

    Porque vocês não disponilizam a carta na Internet para que os internautas possam assiná-la e remetê-la ao Serra? O desgovernador se comporta como um coronel e a carta diz respeito à conduta dele aqui e agora.

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