Artigo publicado no caderno Mais!, domingo (6) A questão da universidade Interferência do governo estadual na gestão das políticas de ensino superior em SP sugere atenção ao setor privado MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO ESPECIAL PARA A FOLHA José Serra interpôs-se ao orçamento das universidades públicas paulistas e à sua gestão [com o contingenciamento de verbas instituído em janeiro passado]. O professor Pinotti [secretário de Ensino Superior] afirma tratar-se de transparência em negócios oficiais, limitando sua assertiva a uma operação técnica, elidindo razões, meios e fins. Subjaz, ao contexto latente, o teor político desse ato: excluir a gestão financeira privativa das universidades e aliená-la à administração direta do Estado, dinamizando recursos para acréscimo de poder. De pronto, é útil atender ao "pujante setor" (Pinotti) das universidades privadas, fonte de votos nutrida por carências de educação e escassez de trabalho, aliado a bolsas, cotas, monitorias, voluntariado, de fato subempregos. No ciclo longo, entram em cálculo alvos cognitivos. Critica-se a liberdade de pesquisa, em nome de diretrizes emitidas por focos externos a ela (governo, empresários, mercado). Esmaeceu-se a consciência de que o engenho científico se afia nos interesses imanentes ao trabalho, em tropeços e prazeres intrínsecos à investigação, batendo pistas indeterminadas a priori. Diluiu-se o senso de que o saber advém sob modos e ritmos vários, que sua busca é infinita, que cerceá-lo é esterilizar seu ânimo, reduzir o progresso da ciência a acúmulo baldio. Entre paradoxos, corta-se a iniciativa e urge-se "inovar". A forma da universidade, no Estado, é crucial para ambos. Ditar áreas de reflexão, enrijecer normas de pesquisa, exigir célere aplicação roem o conhecimento. Do prisma civil: se os alentos da vida espiritual forem preteridos como finalidade, perdem-se as fibras da cidadania. Políticos em leilão, máculas de caráter, intelectuais que se desdizem vingam nesse lapso mortal da interioridade infecunda. Pujante setor Organogramas não são ingênuos. O controle financeiro e a justaposição administrativa das universidades públicas às particulares sinalizam claro intento político: o governo busca valorizar "o ensino superior que não se resume, porém, às três universidades estaduais". Esse "pujante setor" inclui 500 unidades, com "graves questões a serem corrigidas" (Pinotti, na pág. A3 da Folha de 26/1). Como? Dessas centenas, raras têm aval acadêmico e mesmo as precárias são acolhidas: subsidiá-las é abonar verbas públicas a negócios lucrativos. O afã por esse veio não é de agora. A FMU, na qual o professor Pinotti foi reitor e hoje preside o Instituto Metropolitano de Altos Estudos (Imae), realizou seminários (envolvendo órgãos e membros do Executivo, Parlamento, magistratura, fundações de apoio à pesquisa e ao ensino, reitores e docentes do sistema público) sobre reforma universitária, que incluem tal benesse e outros itens anunciados pelo governo Serra. Leia-se a "Revista do Imae". A alta presença do professor Pinotti nessa instituição (em que pese seu admirável currículo acadêmico) e no Estado não define conflito de interesses, legal ou ético? Seguindo a meada: a interface governo Serra/universidade é definida pelo desenvolvimento industrial, em uníssono com Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] e CNI [Confederação Nacional da Indústria], fortes agrupamentos políticos (descuidados por Lula, mas agora atraídos ao Ministério da Ciência e Tecnologia). No alvoroço reformista-empresarial de espelhar nossas instituições no padrão genérico "de todo o mundo", advirta-se que o investimento público, motor de lucro às firmas, é a fundo perdido. Impõe-se cautela: o serviço do Estado (o cidadão paga pesado por ele) não cessa aí, e o desenvolvimento não engata a todos os "modernos" (de empresários a populares) no trem da história, ilusão malograda. Detalhes Via fundações, as universidades públicas privatizam-se, mediante convênios, suplementos salariais e cursos pagos. Para bem ou mal, todo o complexo até agora esteve sob asas acadêmicas. Não mais. Atentem para esse detalhe, os adeptos do modelo. Se o destino universitário é, para Serra e adjuntos, o vínculo inapelável com a prática, não subestimem o tino alheio e o declarem. É um modelo possível, mas velho e autoritário. Nesse quesito, é útil ler Fichte, o nacionalista estatizante, afim às atuais tendências de ativismo centralizador radicado na ordem burguesa, com um olhar de soslaio na comunidade. A excelência acadêmica é cara, e compete ao Estado, com suas derramas, garantir chances iguais de acesso a ela, com rigor seletivo. O ensino básico, compatível com esse ingresso, é um direito, não mister de altruísmo. Diz a má-fé gerada pela ditadura militar que só ricos fruem desses centros e que, algures, pagariam. Qual "elite" (leia-se classe média, provedora-mor da Receita) dispõe, aqui, de US$ 200 mil [R$ 407 mil], preço da Harvard Law School (um professor para cada seis alunos e esplêndidas "research facilities")? Esse, o custo da "Ivy League" [constituída pelas oito mais tradicionais universidades dos EUA], à qual setores americanos médios, menos onerados, podem chegar. Fazemos muito, com menos. ——————————
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