esquecimento memoravel

 

   Um esquecimento memorável.

Do mesmo modo que a globalização fragmentada, os intelectuais estão aí, são uma realidade da sociedade moderna. E seu “estar aí” não se limita à época atual, mas remonta aos primeiros passos da sociedade humana. Mas a arqueologia dos intelectuais foge aos nossos conhecimentos e possibilidades, por isso, partimos do fato que “estão aí”. Todo caso, o que tentamos de descobrir é a forma que adquire agora seu “estar aí”.

Já se sabe que os intelectuais, como categoria, são algo muito vago. No lugar disso, bem diferente é definir a “função intelectual”. A função intelectual consiste em determinar criticamente o que se considera ser uma aproximação satisfatória ao próprio conceito de verdade; e pode ser desenvolvida seja lá por quem for, inclusive por um marginalizado que reflete sobre sua própria condição e a expressa de alguma maneira, ao mesmo tempo em que pode ser traída por um escritor que reage com paixão diante dos acontecimentos, sem impor-se o crivo da reflexão (Humberto Eco, Cinco escritos morales. Ed. Lumen. Tradução de Helena Lozano Miralles, pg. 14-15). Se é assim, então o agir do intelectual é, fundamentalmente, analítico e crítico. Diante de um acontecimento social (para limitarmo-nos a um universo), o intelectual analisa as evidências, o que se afirma e o que é negado, procurando o que é ambíguo, o que não é nem uma coisa e nem outra (ainda que se apresente assim), e exibe (comunica, desvela, denuncia) o que não só não está evidente, como contradiz as evidências.

Deve-se supor que as sociedades humanas tenham pessoas que se dediquem profissionalmente a esta análise crítica e a comunicar seu resultado (nas palavras de Norberto Bobbio: Os intelectuais são todos aqueles para os quais transmitir mensagens é uma ocupação habitual e consciente (...) e, para dizê-lo numa forma que pode parecer brutal, quase sempre representa a maneira de ganhar o pão). Vamos ficar com esta abordagem do intelectual, do profissional da análise crítica e da comunicação.

Já temos sido advertidos de que nem sempre o intelectual exerce a função intelectual. A função intelectual se exerce sempre em antecipação (sobre o que poderia acontecer) ou em atraso (sobre o que tem acontecido); raramente sobre o que está acontecendo, por razões de ritmo, porque os acontecimentos são sempre mais rápidos e estimulantes do que a reflexão sobre os acontecimentos (Umberto Eco, Op. Cit. pg. 29).

Por sua função intelectual, este profissional da análise crítica e da comunicação seria uma espécie de consciência incômoda e impertinente da sociedade (nesta época, da sociedade globalizada) em seu conjunto e de suas partes. Alguém que não se conforma com tudo, com as forças políticas e sociais, com o estado, com o governo, com os meios de comunicação, com a cultura, com as artes, com a religião, com o etcetera que o leitor acrescentar. Se o ator social diz “Feito!”, o intelectual murmura com cepticismo: “falta isso, sobra aquilo”.

Teríamos então que, em seu papel, o intelectual é um crítico da imobilidade, um promotor da mudança, um progressista. Sem dúvida, este comunicador de idéias críticas está inserido numa sociedade polarizada, onde se enfrentam muitas formas e com variados argumentos, mas que no fundamental está dividida entre aqueles que usam o poder para que as coisas não mudem e aqueles que lutam pela mudança. Por uma percepção elementar do ridículo, o intelectual deve compreender que não se outorga a ele um papel de bruxo do espírito em torno do qual vai girar o ser ou o não ser do que é histórico, mas que, evidentemente, ele tem saberes que podem alinhá-lo num sentido ou em outro diante do que é histórico. Podem alinhá-lo com a busca do esclarecimento das injustiças presentes no mundo atual ou com a cumplicidade na paralisação e na instalação no Limbo. (Manuel Vázquez Montalban Panfleto desde el planeta de los simios. Ed. Drakontos. Barcelona, 1995, pg. 48).

E é aqui onde o intelectual opta, elege, escolhe entre sua função intelectual e a função que lhe é proposta pelos atores sociais. Aparece assim a divisão (e a luta) entre intelectuais progressistas e reacionários. Uns e outros continuam trabalhando com a comunicação de análises críticas mas, enquanto os progressistas continuam na crítica à imobilidade, à permanência, à hegemonia e ao homogêneo, os reacionários sustentam a crítica à mudança, ao movimento, à rebelião e à diversidade. O intelectual reacionário “esquece” sua função intelectual, renuncia à reflexão crítica e sua memória fica de tal forma recortada que não tem passado e nem futuro, o presente e o imediato são as únicas coisas que podem ser tocadas e, por isso, são inquestionáveis.

Ao dizer “intelectuais progressistas e reacionários”, nos referimos aos intelectuais “de esquerda e de direita”. Convém acrescentar aqui que o intelectual de esquerda exerce sua função intelectual, ou seja, sua análise crítica, também diante da esquerda (social, partidária, ideológica), mas na época atual a sua crítica é fundamentalmente diante do poder hegemônico: o dos senhores do dinheiro e daqueles que os representam no campo da política e das idéias.

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2 Responses to esquecimento memoravel

  1. Fábio says:

    O PODER AMERICANO
    E OS NOVOS MANDARINS

    Não poderia ser mais providencial a publicação no Brasil, em 2006, pela Record, do livro O PODER AMERICANO E OS NOVOS MANDARINS, de Noam Chomsky. Apesar de ter sido escrita na década de 1960, a obra do lingüista americano continua surpreendentemente atual e ajudam-nos a compreender os conflitos atuais externos americanos sob uma perspectiva histórica.

    Para nós, encurralados na guerra entre as polícias e as facções criminosas que espalham o terror no Rio de Janeiro e São Paulo, a leitura do ensaio A RESPONSABILIDADE DOS INTELECTUAIS pode ser bastante ilustrativa. Em razão disto, farei uma resenha bastante detalhada do mesmo procurando extrair algumas conseqüências práticas para nosso dia-a-dia.

    Afirma Chomsky que os intelectuais “…estão em condições de denunciar as mentiras dos governos, de analisar os atos de acordo com suas causas, seus motivos e não raro suas intenções ocultas.” E mais, que esta minoria privilegiada estaria em condições de “…buscar a verdade oculta por trás do véu de distorções e deformações, da ideologia e dos interesses de classes através do qual nos são apresentados os acontecimentos da história em curso”.

    No Estado de São Paulo o PCC desencadeou uma onda de violência e atentados. A reação da polícia acarretou uma centena de mortos. Novos atentados foram praticados, um jornalista raptado e libertado em troca da publicação de uma nota oficial da facção criminosa em que o Estado é acusado de cometer abusos contra os presos. E todos nós sabemos que os abusos carcerários ocorrem todos os dias nas cadeias paulistas. Tudo isto ocorreu durante um ano eleitoral em que a sociedade discute abertamente a privatização total ou parcial do sistema prisional. Estes são os fatos da história recente paulista, mas ninguém ainda teve a coragem de investigar as possíveis e inusitadas relações entre as rebeliões nas cadeias, o terror nas ruas e a privatização dos presídios.

    O debate tem se restringido à publicação de textos que apóiam ou rejeitam a privatização dos presídios. Isto é muito pouco. A sociedade custeia um sistema prisional com vistas ao cumprimento das penas dentro da Lei. Custeia uma polícia carcerária para conter os presidiários também dentro dos limites da Lei. Custeia um Poder Judiciário que fiscaliza ou deveria fiscalizar o adequado cumprimento das penas. Entretanto, muitos abusos cometidos não são punidos (como, por exemplo, o massacre do Carandiru), alguns membros do Judiciário permitem o uso excessivo da violência e nada sofrem. O resultado não poderia ser mais funesto: os presos se rebelam porque também são seres humanos dotados de direitos e sabem disto. Os contribuintes, que já pagam tributos da ordem de 36% do PIB, acabam aterrorizados porque o Estado é ineficiente e a solução que pretendem empurrar goela abaixo da sociedade é a privatização dos presídios. O que nos garante que o sistema vai funcionar melhor depois de privatizado? Porque ele já não funciona se custa tão caro?

    A propósito da guerra do Vietnam, Noam Chomsky afirma no ensaio que os “…fatos são conhecidos de quem quer que se disponha a conhecê-los. A imprensa, tanto estrangeira quanto nacional tem apresentado provas para refutar cada invenção no momento em que é divulgada, Mas o poder do aparato de propaganda do governo é tamanho que o cidadão que não empreende por conta própria uma pesquisa sobre a questão dificilmente poderá contestar pronunciamentos governamentais com fatos.”

    Estamos em meio a uma guerra, uma guerra que foi enunciada publicamente pelo ex-governador de São Paulo, o mesmo que agora disputa a presidência da república. Quanto de verdade há de verdade e de propaganda governamental nesta guerra? É uma guerra ou um problema criminal perfeitamente controlável que está sendo usado para reforçar ou abalar a liderança deste ou daquele candidato a presidente? A questão da criminalidade tem alguma ligação com a disputa política? As quadrilhas que atuam nos presídios e nas ruas são desdobramentos das que atuam no Congresso? Cabe aos intelectuais pesquisar e responder estas questões, bem como fazer outras perguntas mais impertinentes ainda.

    Sobre a política externa americana, o autor afirma que ninguém “… se sentiria perturbado por uma análise do comportamento político dos russos, franceses ou tanzanianos, questionando suas motivações e interpretando seus atos do ponto de vista dos interesses de longo prazo, possivelmente oculto por trás da retórica oficial. Mas a pureza das motivações americanas e o fato de que não estão sujeitas a análise constitui um artigo de fé.” O que era verdade na década de 1960 continua sendo verdade neste princípio de século XXI, em que os EUA tocam duas campanhas sangrentas no Oriente Médio (além de apoiar as recaídas do militarismo israelense, é claro). Contudo, será que nós brasileiros também não estamos seguindo este padrão ao manter tropas no Haiti?

    Os especialistas em segurança dizem que não é função do Exército policiar favelas. Mas não é exatamente isto que fazemos no Haiti? Que objetivos políticos eram pretendidos e quais foram alcançados e, principalmente, qual está sendo o custo desta aventura que não resultou numa cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, nem amenizou as desconfianças americanas em relação ao nosso programa nuclear?

    Ainda sobre a agressão ao Vietnam, Chomsky critica os formuladores da tese de que a intervenção no sudoeste da Ásia era necessário com argumentos do tipo “…somos abertamente desafiados e nos sentimos ameaçados pela China comunista”. Sempre irônico arremata “… nem é necessário demonstrar que sofremos uma ameaça, e a questão passa em branco; basta que nos sintamos ameaçados.” Este ensaio é particularmente importante, porque demonstra que os elementos da guerra preventiva da era Bush já estavam delineados há mais de 40 anos, que a própria guerra do Vietnam foi em certa medida preventiva.

    E a nossa guerra contra o crime, poderia ser preventiva? O que devemos fazer, matar os suspeitos antes que cometam crimes (como já andou fazendo a polícia paulista) ou recuperar à criminalidade os espaços urbanos e grupos sociais que os criminosos controlam? Quais políticas municipais, estaduais e federais podem ser desenvolvidas para recuperar as comunidades que caíram nas garras dos bandidos e que certamente gostariam de se ver livre de suas brutalidades? É evidente que Chomsky não aborda estes temas. Mas nada impede que tratemos deste assunto, pois seu texto procura infundir nos intelectuais sua responsabilidade. E mais do que ele nós somos responsáveis pela situação calamitosa em que se encontram nossas cidades.

    É interessante notar como já na década de 1960 o autor havia percebido que por “…mais que seja mascarada por uma retórica piedosa, a agressividade americana é uma força dominante nas relações internacionais e precisa ser analisada do ponto de vista de suas causas e motivações. Não existe um corpo teórico ou qualquer conjunto significativo de informações relevantes que, estando além do entendimento do homem comum, torne as políticas do Estado imunes a críticas. Sempre que ‘conhecimentos especializados’ forem aplicados às relações internacionais, certamente caberá – e será necessário, para qualquer pessoa de mínima integridade – questionar sua qualidade e os objetivos a que serve.”

    É evidente que Chomsky critica neste fragmento o chamado “discurso de autoridade”. Estamos familiarizados com ele. Todos os dias ligamos nossas TVs e vemos especialistas falando isto ou aquilo sobre economia, política externa, questões de segurança, administração da justiça, sistema carcerário, etc…

    Entendemos pouco de economia e menos ainda de política externa, nem temos razões para nos preocupar muito com estes assuntos. Mas a segurança é um assunto que nos interessa. Somos mais vulneráveis do que as celebridades da TV (que moram em condomínios seguros e andam em carros à prova de balas). Você já se perguntou se algum daqueles especialistas conheceu sua periferia violenta, já entrou num presídio ou realmente estudou profundamente o abismo que existe entre o sistema carcerário concebido pelo legislador e aquele que existe na realidade? Muito embora as redes de TV não queiram nos enganar, seus especialistas nos desviam de um problema que também é nosso. Nada garante que eles estejam realmente em condições de interpretar nossas necessidades melhor que nós mesmos. Se nós mesmos nos interessássemos mais pelo assunto poderíamos arrumar soluções melhores e mais duradouras.

    Ainda sobre o papel do intelectual o autor afirma que “…nossa principal preocupação deve ser o seu papel na criação e na análise da ideologia.” Todos os dias a TV cria uma ideologia sobre a criminalidade, o PCC e as facções criminosas no Rio de Janeiro. Poucos são os jornalistas que tem se preocupado em analisar detidamente esta ideologia, mas infelizmente o grande público não tem acesso à produção deles.

    Um pouco mais adiante, Chomsky afiram que se “…é responsabilidade do intelectual insistir na verdade, também é seu dever enxergar os acontecimentos em sua perspectiva história.” Como tem em mira a política externa americana naquela década de 1960 afirma que “…devemos portanto aplaudir a insistência do secretário de Estado na importância das analogias históricas, por exemplo, a analogia de Munique. Como Munique deixou claro, um país poderoso e agressivo, com uma convicção fanática de seu destino manifesto, encarará cada vitória, cada ampliação de seu poder e autoridade, como prelúdio para o passo seguinte. A questão foi muito bem colocada por Adlai Stevenson quando falou do ‘antigo, muito antigo caminho no qual as potências expansivas vão empurrando cada vez mais portas, acreditando que haverão de abrir-se, até que, na última de todas, a resistência é inevitável e irrompe uma grande guerra.’”

    As palavras de Chomsky e as que cita soam proféticas. Os americanos estavam empurrando uma porta atrás da outra até que o atentado às Torres Gêmeas demonstrou sua fragilidade interna. Ao invés de repensar sua política externa, o governo Bush resolveu empurrar novas portas no Oriente Médio. Enterrou os EUA em dívidas e controla precariamente dois paises. Mas nem os fracassos no Afeganistão e no Iraque foram capazes de arranhar o ímpeto imperialista americano. Neste exato momento os americanos se preparam para uma campanha no Irã, ameaçam a Coréia e cutucam a China a propósito da ilha que os chineses querem reaver. Os ocupantes da Casa Branca parecem desejar consciente ou inconscientemente um confronto final (e podem acabar engolidos pelos cogumelos nucleares).

    A racionalidade dos formuladores da política externa americana é muito similar à dos gestores de segurança pública brasileira: quanto pior melhor. Melhor para quem, porra?

    O ensaio A RESPONSABILIDADE DOS INTELECTUAIS é um clássico. Somente ele já vale o investimento no livro. Mas o livro tem mais, muito mais. O PODER AMERICANO E OS NOVOS MANDARINS é um Chomsky legítimo. Como o vinho a obra ficou melhor com o passar do tempo. Muitas de suas análises e abordagens continuam atuais ou, no mínimo, nos ajudam a compreender melhor o nosso mundo (por menor que ele seja).

    Fábio de Oliveira Ribeiro

  2. mensagens says:

    e voces continuam bloqueando as mensagens! que bonito!!! que democratico!!! fiquem ai dentro mofando no idealismo vagabundo!!

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